28 janeiro, 2015

6:08 am.


terça-feira, 6:08 am.


  Abigail, como de costume, acorda uma hora antes do programado. O que lhe dá tempo de sobra para escolher qual dilema a fará se atrasar para o trabalho nesta manhã. Seu despertar atinge todo o corpo... Pés friorentos, barriga barulhenta, braços dormentes.
  Após fracassar, como de costume, em seu resgate onírico, não se sente mais confortável em sua cama e se senta. O despertar que atingira o corpo todo minutos atrás, se faz ausente em suas pálpebras. Permanece sentada. A incongruência entre seus olhos e seu ânimo a dissimula em seu dia-a-dia. Ela levanta pra fazer café.
  Bebe a última gota de café sem açúcar no exato momento em que lembra da exagerada caneca de chá de gengibre deixada à deriva na geladeira, noite passada. Dias como ontem, ou qualquer um, fazem com que Abigail só consiga pensar em chegar à casa, e preparar um reconfortante chá de gengibre. Mas por que deixara tanto chá sobrando? Ou então por que enchera tanto a caneca? Vasculhava suas lembranças da noite passada focada em achar uma resposta. Fazia tempo que não conseguia se concentrar em mais nada. Fazia tempo em que não sentia um friozinho tão gostoso... Sentiu seus mamilos apontados sob a camisola. E quando ergueu seus olhos para ver para onde apontavam, percebeu que encarava a geladeira há dez minutos.

  "ABIGAIL  NARAME
  DEPTO. PSICOLOGIA"

  Leu aliviadamente tendo, enfim,  localizado seu crachá. Corria dentro de casa feito louca para poder sair a tempo. O Chefe do departamento já havia a advertido algumas vezes, mas essa semana uma nova ameaça emergia. Rumores de que o novo Diretor do Instituto faria uma visita e subsequente avaliação individual de cada um dos profissionais. Não se sabia até que ponto esta tal visita era verídica, Abigail tinha certeza que não, mas duvidava ainda mais de suas certezas.
  Já no taxi, teve um dos raros momentos de serenidade de seus dias.   Observar as pessoas caminhando no aterro.
  Observava os casais aposentados.
  Os jovens andando de skate e bicicleta.
  Esperava sempre avistar alguma menina, de preferência morena, de cabelos longos e baixinha, voando baixo em um par de patins. De olhos quase que fechados, como se desafiasse sua segurança, como se estivesse cansada de andar para chegar em lugar que fosse, como se quisesse, ao menos uma vez, sentir o vento contra o rosto, sentir o movimento, sentir o deslocamento, mas permanecesse em apenas um lugar. O escuro por de trás das pálpebras.
   Chegou ao trabalho 7 minutos atrasada. Nunca chegara tão cedo.
Passou por seus colegas como um fantasma. Não que isso fosse de alguma maneira especial, todos passavam por todos como fantasmas, afinal, nada mais adequado para um lugar perfumado a Formol. Passou por seu chefe despercebida e aliviada. Tudo parecia normal. Sua sala, ou cubículo, se encontrava aberta. O ambiente de trabalho de Abigail sempre respirou burocracia. Os funcionários, sobretudo os novatos, não obtinham autonomia nem mesmo para circular com as chaves de suas salas, ou cubículos. Mas desta vez a porta se encontrava descerrada. Não escancarada, mas encostada ao ponto de poder ser aberta por um leve sopro. 
  Adentrando sua sala, investigou, como boa forense que era, as peculiares mudanças que o indivíduo que invadira sua sala realizou.
O ambiente parecia estar mais leve. Abigail logo aferiu que haviam menos cadáveres. Conferiu então as gavetas onde eram depositados.   Não havia nenhum. Nenhum sequer. Até esse momento, ela só encontrara motivos para evitar qualquer encontro com o chefe do Departamento. Hesitou durante longos ou curtos segundos apoiada a uma das gavetas semi-aberta... Respirou fundo e foi de encontro à porta. Tentou abri-la com a mesma destreza que entrou e deparou-se com a incapacidade. A porta se encontrava em profunda inércia. Nem mesmo a maçaneta se movia, por mais força que Abigail aplicasse. Tentou arrombar a porta. Quebrar o vidro isolante da janela que dava pro corredor. E nada. Diante disso, resolveu surpreender a todos com uma amostra de vida naquela mulher tão quieta. Abigail abriu sua delicada boca e soltou um grito. Um grito que nem mesmo ela escutou.   Ela sentia as vibrações de seu estrondo primitivo passarem da garganta até os dentes, mas não conseguia ouvir nada. Nem um pio.
Um absurdo que, em sua breve e inquisitiva memória, não fazia sentido algum. Sua garganta encontrava-se em perfeito estado... Daí, em mais uma súplica à própria mente, tentou reconstruir seus passos desta manhã. Não lembrava de nenhum diálogo. Todas as insignificantes pessoas das quais Abigail geralmente fugia, a ignoraram. Sua aleatória memória, então, voltava à procura pela menina, de preferência morena, de cabelos longos e baixinha, voando baixo em um par de patins. De olhos quase que fechados, como se desafiasse sua segurança, como se estivesse cansada de andar para chegar em lugar que fosse, como se quisesse, ao menos uma vez, sentir o vento contra o rosto, sentir o movimento, sentir o deslocamento, mas permanecesse em apenas um lugar. O escuro por de trás das pálpebras... O que a fez recordar da viagem até o trabalho. Tinha certeza de que viera de Taxi, e como poderia ter chegado ali sem dar as coordenadas ao taxista? Nem mesmo do rosto do motorista ela se recordava. Nem da quantia paga. Caía, aos poucos, em sua torturante demência. Era desesperador.
Parecia ter-se dado por vencida contra sua mente,mas ainda tinha seu corpo. Se jogou contra a porta numa última tentativa de sair daquele estranho pesadelo. E, confrontando mais um fracasso, escorregou tangente à porta até o chão. A luz que iluminava sua sala encontrava-se numa intensidade singular. Enquanto deslizava, percebeu a uniformidade entre porta e chão. Rebaixou a cabeça até onde seria possível enxergar o outro lado da porta, mas era como se houvesse uma parede branquíssima a substituindo. Ergueu o olhar na mesmo compasso em que erguera mais cedo ao olhar seus próprios peitos, e não via mais a maçaneta. Afastou-se prontamente da porta ou parede onde se encostava, e era tudo meramente branco. Sem limites aparentes.
  Seu próximo passo foi uma espécie de sadismo. Se beliscava, dava tapas em sua própria cara. Se mordia. Se masturbava. E nada. Se sentia uma raposa aos cuidados de Lars Von Trier. Reconhecia a dor e o prazer como o ápice único do "ser" humano. Não havia caminho mais preciso para a realidade do que os dois. E nada sentiu. 
  Exausta, Abigail tentou organizar seus últimos passos em consciência para verificar o que havia de errado, mas sua memória parecia armar truques. Tudo o que esmiuçava em sua cabeça retornava ao relógio do lado da cama, informando as 6:08 am.
  Ela, então, encarou a sala em que estava, canto a canto. Como uma cena de Stanley Kubrick. 
  A sala ficava cada vez mais pálida. Ela olhou para baixo.
  E viu um cadáver coberto. Não queria descobrir o rosto. De certa forma, sabia o que encontraria ali... Mas, mesmo assim, sua curiosidade lhe matava por dentro. Ou por fora. 
  Não tinha coragem de encarar o rosto que ali fora reclinado.
  Decidiu pôr fim à sua tortura e levantou o cobertor do lado dos pés do cadáver. 
  Quando sentiu tocar uma espécie de material plastificado. O que a surpreendeu, pois não esperava uma etiqueta de óbito na situação que encontrava-se.
  Pegou a etiqueta com a mão.
  E Leu: "6:08 am."





Abigail Narame era vista como uma mulher fria e discreta. Poucas pessoas, quiçá nenhuma, sentiram Abigail. Era mulher para ser fitada. Admirada. Porém, nunca decifrada. 
Fora assim durante toda a sua morte.


  



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