13 janeiro, 2015

Dois Irmãos

Desculpa pela má caligrafia... Parei pra beber uma dose de whisky no caminho de casa. Sim, eu voltei a beber. Você pregava que eu não conseguiria ficar 3 meses sem beber. E eu fiquei meia semana.
Mas pregava muita hipocrisia também... Teve uma coisa que você cuspiu na minha cara que ainda tá difícil de engolir. Que "fazia tudo para manter essa família unida!". Até a merda do dia seguinte quando levou meu filho embora. Mas isso não importa. Quer dizer, importa sim, importa pra caralho! Mas mesmo assim, não vem ao caso.
Sabe de uma coisa? Eu ia ficar três meses sem beber, e talvez até mais. Ia mesmo. Até hoje, quando aconteceu a segunda maior tragédia da minha vida. Acho que essa é a parte da carta em que você começa a se importar com o que eu tô te escrevendo.
Quando você finalmente cumpriu sua ameaça de me deixar, não pensou, ou talvez até tenha pensado, mas irrelevou, na separação entre a Lú e o Caê. Eu sei que a Luisa não era sua filha, e que vocês nunca fizeram muito esforço para tentar mudar esse estigma. Nem eu fiz. Mas ela e o Caetano eram muito mais do que meros irmãos postiços. Eles amavam um ao outro. Se entendiam de uma maneira tão harmoniosa, apesar da diferença de idade. Até mesmo quando a Luisa entrou para o ginásio, ela não deixou de andar com ele, nem de fazer questão de irem pra escola juntos. Você não tem ideia do que foi vê-la contando os dias no calendário da geladeira para que as férias acabassem logo, e que ela, pelo menos, pudesse voltar a conviver com seu irmão mais novo. Ela ficou tão entediada morando sozinha comigo... Eu nunca havia percebido esse meu lado tão chato.
O que leva à ideia que tive há uma semana... Um programa pai-e-filha, saudável, como se fôssemos uma família normal, porém sem a mãe, que preferiu ficar em casa para nos dar um tempo a sós e nós botássemos o papo em dia.
Desculpa se eu não estou sendo objetivo... Esse costumava ser o seu defeito. Mas tenho medo de que escrever o acontecido possa doer tanto quanto tê-lo presenciado.
Propus à Lú que nós fizéssemos a trilha do morro dos Dois Irmãos... Não hesitei muito em fazer a proposta, uma vez que era uma vista linda, era perto o suficiente para que a Luisa não ficasse com preguiça, e também porque era um programa que dificilmente faríamos com você por perto. E como eu queria que você estivesse por perto.
Na primeira vez em que mencionei a ideia, ela me pediu para repetir o nome do morro umas duas vezes, o que estranhei, pois sabia que ela, morando no Leblon há tanto tempo, já estava familiarizada como o nome. Após eu reafirmar: "Dois Irmãos." Ela expressou um olhar discretamente surpreso por realmente estar ouvindo aquilo, e logo em seguida me encarou com um olhar contínuo e devastador de desprezo. Eu nunca fui muito bom em interpretar as mulheres e seus dialetos corporais... Menos com os seus. Mas quando eu menos esperava, no dia seguinte, o que foi há dois dias, ela veio até meu quarto me concedendo sua ida à trilha. Como uma espécie de prêmio de consolação por eu ter tentado. Você já deve ter percebido a dolorosa ironia pela qual a Luisa teve que passar, e que apenas me ocorreu entre a terceira e quarta dose... Ou a quarta e a quinta dose de Bourbon. Eu não fazia ideia.
E lá fomos nós... Um dia depois, à nossa maquiada jornada Pai-e-filha. Esperamos até umas 17h para pegarmos o ônibus até o Vidigal. Tanto eu, como ela, só pensávamos em evitar o escaldante sol durante a subida, e também pegar o pôr-do-sol, vermelho como uma Cereja 
adentrando as nuvens de glacê, ao chegar no pico. A Luisa queria subir de moto-taxi, e você talvez fique surpresa em saber que eu disse não à ela. Como um pai responsável. Era uma jornada bastante maquiada. Isso a frustrou e a manteve calada durante praticamente todo o percurso. Toda aquela esperança hollywoodiana que eu tinha desse passeio dar certo ia por água abaixo. E por falar em água esse foi mais um dos motivos para deixá-la amargamente puta comigo. Levei uma garrafa de 600mL. Houve um momento, contudo, que lher foi prazerosa a subida... Quando eu escorreguei numa das partes mais íngremes e sujei toda a minha bermuda com terra. Ela esboçou o que parecia ser um riso.
Chegamos ao topo minutos antes do pôr-do-sol e ele ainda estava num tom alaranjado.
Não tinha muito o que esperar da Luisa lá em cima... Ela nunca foi o tipo de garota que ia de acordo com a maré, como a maioria das meninas da sua idade. Não tinha interesse em tirar fotos bacanas e mandar para suas amigas ou amigos. Ela nunca ligou muito para o que os outros pensavam dela, e eu sempre me orgulhei muito disso. Lembro que isso te incomodava um pouco, afinal, ela também não ligava para o que você pensa. Nem o que eu penso. Acho que a única pessoa por quem ela já realmente se importou foi o Caetano. Enquanto subíamos em silêncio, eu torcia para chegarmos logo ao topo, não mais como um 'Grand Finale' da nossa trilha, mas para que aquilo, seja o que fosse, enfim terminasse. Mas, pelo visto, a Luisa fez questão de um 'Grand Finale'.
Ela sentou-se pensativa numa das pedras viradas para o mar, parecia ter procurado o local mais afastado possível naquele pequeno espaço. Dois grupos de pessoas, provavelmente turistas de algum lugar carente de beleza do Brasil, começaram a aplaudir o sol se pondo como, presumi, um eco do que presenciaram antes numa visita ao Arpoador. Não conversei com ela sobre isso, mas tenho certeza que a irritaram.
O crepúsculo, enfim, terminou, e passado um tempo, éramos os únicos lá em cima. Achara um pouco desconfortável a presença de tanta gente desconhecida nos cercando, mas passei a ficar mais ainda na presença da minha própria filha. Então, separado dela, comecei a pensar coisas que julgava, naquele momento, horríveis: "será que nossa relação será sempre assim de agora em diante?" "Ou será que já era assim, mas a presença do Caê e a sua nos mantinham ocupados e entretidos?" "Sou um péssimo pai! Não consigo puxar um assunto sequer que não soe patético aos ouvidos dela." Eu remoía.
Foi quando Luisa me mostrou a superficialidade dessas preocupações.
Voltei a me virar para o lugar onde a vi pela última vez, pensando ter dado um longo e necessário momento de privacidade, mas ela não estava lá. Olhei para todos os lados, e nada. Chamei seu nome em voz alta, e nada. Esperei cerca de um minuto e meio encostado à estaca central da pedra, cogitando quem sabe uma mudança de espírito repentina da Lú com uma brincadeira de esconde-esconde, como ela tanto fazia quando era pequena, e nada.
Ela desapareceu. Foram tantos os pensamentos que vinham à minha cabeça... Tentava não me desesperar, mas como? Estava escurecendo, e na melhor das hipóteses, minha filha de 15 anos estava caminhando sozinha mata adentro. Uma mata cheia de animais silvestres, Homens silvestres, bandidos silvestres, policiais silvestres. Tentava não me desesperar. Mas eis que surgiu o ápice de meu pânico. Caminhei vagarosamente até o local em que ela se encontrava sentada 10 minutos antes... Esperava até algum tipo de recado, ou pista, que me guiasse ao seu encontro. Achei apenas pequenas pedras. Me sentei exatamente onde ela se sentara. Comecei a chutar algumas das pedrinhas como um escape da ansiedade... Aposto que ela fez o mesmo enquanto estava ali. Daí levantei rapidamente, e no que fiz isso, me desequilibrei. Foi aí que me deparei com o precipício que separava aquelas pedrinhas de uma mistura fatal de rochedos e árvores centenas de metros abaixo. 
No segundo em que consegui recuperar meu equilíbrio, perdi meu controle emocional.
Chorei.
Esperniei.
Gritava o nome de Luisa à toda força. 
Procurava algum rastro, quem sabe de sangue, nos rochedos...
Ela não pode ter pisado em falso e caído sem ter expressado um mísero grito de pavor. Eu sabia que a Luisa era de certa maneira, fria. Mas nunca imaginaria, e até agora custo a acreditar, que ela seria capaz de tamanha frivolidade. Ou terá sido suicídio? Será que fui tão deplorável na minha função de pai, que não fui nem capaz de perceber um comportamento suicida da minha própria filha?
Descia a trilha numa velocidade frenética, caí algumas vezes, e toda vez que ia ao chão me odiava mais. Cada atraso ao amparo de minha filha, na agora segunda melhor hipótese, era mais tempo em que ela se encontrava ferida e sozinha dentro da selva. Odiava cada pedra que me esbarrava pelo caminho. Odiava as bifurcações da trilha que me confundiam e aumentavam a cada minuto meu desalento. Odiava os policiais que encontrei ao pisar dentro da favela. Odiava os moradores curiosos que assistiam de camarote ao meu sofrimento. Odiava a mim. Mas te odiava. E como odiava. Por que você não estava ao meu lado num momento daquele? Comecei a ligar os pontos ao descer a favela e cheguei à egoísta conclusão de que era tudo culpa sua. Se você mantivesse sua promessa de manter essa família unida, se tivesse ao menos me dado uma chance de lhe convencer a não ir embora, talvez nada disso teria acontecido. Talvez a Luisa estivesse assistindo TV na sala com o Caê deitado com a cabeça sobre seu colo... Roncando baixinho... E sempre que acordasse, negando ter caído no sono. 

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