28 março, 2015

Diário de Bordeaux

  Uvas; parreiras inesgotáveis até onde os resquícios de nuvem, do outro lado da janela, não ofuscam minha curiosidade. O que eu não daria por um bom vinho agora...? Confesso que, dadas as circunstâncias, ofereço minha vida de bom grado. Não sei muito bem por onde começar.
    O início, ou fim, muito provavelmente ambos, desta estória(ou história; já vai sê-la ao momento em que alguém estiver lendo isto), toma parte em minha viagem para França. Já estou perto dos meus 50, e nunca havia conhecido o país. E olha que venho de família afortunada. Sei lá, nunca fui de mostrar muito interesse ao que se julga interessante. No momento, gostaria de ser aquele cara, que já com seus dois filhos indo para a faculdade, e comemorando suas bodas de sei-lá-o-quê no seu próspero casamento, olha para trás e diz para si mesmo(ou para a câmera), após um profundo suspiro: "É... Foi uma vida bem vivida." Gostaria mesmo. Por muito tempo senti aversão a esse tipo de sujeito, mas hoje, mais especificamente nestes últimos minutos, gostaria de dizer isso para mim mesmo, ou então para a mulher gritando ao meu lado, e não sobrar-me dúvida alguma. A dúvida... Esta sim foi uma companheira para a vida toda. Se tivéssemos nos casado no papel, já teríamos passado das bodas de ouro. A dúvida faz o medíocre. O cria diante dessa merda de mundo, se espalhando de maneira viral. Para seus filhos medíocres, seus netos medíocres. No meu caso, tive a decência perante a humanidade, e optei por não ter filhos. Optei, porra nenhuma! Acho que não há mais porque mentir para ninguém, muito menos para mim mesmo. Queria ter filhos. Sempre fui fascinado pela ideia de ter uma extensão minha, mesmo que fosse de minha mediocridade, mas seria minha. É um puta narcisismo e eu sei. É que nunca tive coragem de me comprometer a ninguém, nem comigo mesmo... E um filho implicaria mais uma Mãe enchendo o meu saco. Não consigo nem imaginar. Portanto, acho que fiz bem em não ter tido filhos, ou casado.
  Merda! Preciso me concentrar. Tenho que terminar esta merda logo. Onde eu estava? Ah, sim... Como vim parar neste avião.
  Há um mês e umas duas ou três semanas, estava batendo um papo com o coordenador não-sei-das-contas da minha antiga editora. Ele já me fizera um ou dois favores lá dentro, e eu tinha até um certo apreço por ele. Me chamava, vez ou outra, pra tomar um cafézinho e falar da vida. E eu ia, de certa forma, animado. Sempre preferi ouvir as pessoas a ter que revelar minha vida, por mais conversa-de-bar que fosse... Isso até que me ajudava com as garotas, por ouvir o que elas tinham a dizer, e tudo mais, mas não era útil quando se tratava de "fazer" amigos. Porém, dessa vez sua atenção estava virada especialmente para mim. Ele queria saber o porquê de nunca mais ter recebido minhas ligações lá na editora. Realmente, fazia muito tempo. Disse até que sentia falta das minhas crônicas e romances(de, no máximo, 100 exemplares). Das quais eu duvido que ele jamais tenha lido uma página. Respondi dizendo que me faltava tempo, e, antes que pudesse concluir minha resposta, ele retrucou rapidamente:"Um escritor? Sem tempo?! Essa é boa!" e soltou uma gargalhada irritante, daquelas que duram um tempo exagerado e lhe obrigam a rir também para não tornar a situação desagradável. Esbocei uma risada sem-graça e trissílaba, seguido de um belo gole de café, e um olhar distante. E o pior é que o desgraçado tinha razão. A falta de tempo foi uma desculpa das mais esfarrapadas que já tive o desgosto de inventar. Resolvi abrir o jogo(claro, não todo o jogo). 
  Lhe contei sobre minha condição. Não era câncer, ou alguma doença do coração, o que tenho certeza que atrairia uma vasta legião de (in)desejáveis leitores para esta peça. E sim, minha terrível e terminal ausência de criatividade. O caso mais grave que já vivenciei. Havia 1 ano, 2 meses, e 18 dias que não escrevia nada. 
N-A-D-A. Pensava que, um sujeito como Carlos(seu nome só me ocorreu agora) ficaria horrorizado ao ouvir algo do tipo. Mas, pelo visto, os negócios iam de mal a pior. Ele é o tipo de cara que sempre tenta tirar o melhor da situação, por mais fétida que a merda toda cheire. E ignorou minha miserável situação, o que me deixou bem envergonhado, e se pôs a pensar em soluções. Me encarou durante segundos e finalmente rompeu o agradável silêncio: "O senhor está deprimido?"- perguntou-me com curiosa destreza. Eu demorei para lhe responder. Não que não soubesse se estava deprimido, muito menos porque tinha medo de lhe conferir tal resposta, mas tentava classificar seu tom de voz. Ele começara a frase com um "senhor", demonstrando um respeito que raramente me atribuía, apesar de minha superior idade; e a terminara num tom ansioso, como se torcesse para que a a resposta fosse sim. "Não." - respondi com firmeza - "Definitivamente, não." E ele bufou, desapontado.(Entendi, horas depois do fim de nossa nada amistosa conversa, o porquê de sua reação. Escritores deprimidos podem produzir a qualquer momento.)Voltou a olhar pra baixo, concentrando-se em busca de uma nova solução.
  "UMA VIAGEM!" - saltou da mesa, comigo junto devido ao susto que levei - "Eu bem sei que o senhor é rico-de-berço... Pode agendar uma viagem, uma espécie de férias de seu ócio, hãn? Acho que lhe faria muito bem!" - começou a vender seu produto antes mesmo de saber do que se tratava - "Deixe-me ver... Estamos adentrando o outono. Quem sabe um destino como a... França!" - borbulhava de entusiasmo - "Sim!" - parecia estar iniciando uma espécie de orgasmo. Fechou os olhos, indicando-me com as mãos para que fizesse o mesmo - "Imagine o senhor sentado num banco de uma 'boulevard'" - ainda encrementou um sotaque fajuto à sua fantasia - "cercado por folhas alaranjadas, arrastando-se pelas calçadas, num lindo fim de tarde parisiense, respirando arte e inspiração!". Por mais superficiais que fossem, suas palavras despertaram certo interesse de minha parte. Afinal, nunca havia visitado a França. Realmente me imaginei no tal banco, escorando-me metro a metro pelas ruelas de Paris, bêbado de vinho. Parecia um bom plano, tive que admitir. Depois disso, o disse que ia pensar no assunto, e nos despedimos. Ele provavelmente tinha uma lista cheia de outros "cafézinhos" com escritores que não lhe telefonavam fazia tempos. E comprei minha passagem na semana seguinte. Um vôo para Paris, com decolagem prevista para as 22:00, e aterrissagem às 9:00 da manhã, no dia seguinte. Classe econômica. Nunca havia viajado na classe econômica, nem ido à França. Acabaria com isso nesta viagem.
  O estágio do texto, agora, é crítico. A estória que lhe(s) escrevo já se encontra no mesmo espaço físico, e em alguns instantes, se coincidirá temporalmente.
  O vôo de onze horas, até o momento, passou inacreditavelmente rápido. Engraçado, pois encontrei mais sossego aqui na classe econômica, do que na aclamada primeira classe, com todas aquelas comissárias de bordo enchendo o saco, perguntando se eu gostaria de mais alguma coisa. Minhas distrações, aqui na econômica, foram naturais e dignas de minha admiração. Inúmeras famílias e seus caçulas mal-educados chutando a poltrona da frente; pessoas gordas e suas volumosas pernas comprimidas no ridículo espaço entre um assento e outro, obstruindo a passagem de pessoas não tão gordas que vão ao banheiro sempre que obtêm a chance; ou então, gente neurótica que começa a puxar assuntos incoerentes de maneira excessiva, durante a decolagem, por seu medo de voar. Achei o máximo.
  Uma pena vê-las tão desesperadas agora. Sucumbindo ao inevitável. Como explicar para os próprios filhos, que seu sonho(o que seguramente era de seus pais, projetado neles) de conhecer a europa, seria vetado pela porra de "falhas técnicas nos motores 1 e 2" - palavras cautelosamente escolhidas pelo piloto - que começaram a dar problema pouco antes de sobrevoarmos a fronteira francesa.
  À esta altura(a qual diminui quilômetros a cada minuto), muitos já se encontram inconscientes. A senhora que permanecia em estado histérico desde o comunicado do capitão, enfim, desmaiou ao meu lado. Não sei muito bem se desmaiou ou enfartou. E eu também não tenho tempo para checar batimentos cardíacos, o que me atrasaria na conclusão deste parágrafo, e não faria nenhuma diferença a seu trágico fim; empurrei(respeitosamente)sua cabeça para o lado em que outro senhor repousava. É necessária muita concentração para escrever num momento como este. Coloquei, então, meus nunca-tão-úteis fones de ouvido, e não pude escolher o que seria minha última música neste mundo cruel. E, em minha derradeira covardia, escolhi a opção "Aleatório", e fui contemplado com um presente divinal. Um verdadeiro sinal de Deus. O Requiem em D menor de Wolfgang Amadeus Mozart. Não acreditei em meus ouvidos. Como pode? Todas aquelas almas obstinadas a tentar receber qualquer sinal Dele, suplicando por misericórdia, declamando seu amor e fidelidade. E sou eu quem é abençoado. Eu, que nunca fora a uma missa sequer, desde a minha torturante catequese, quando era jovem. Benditas linhas tortas.
  A obra-prima de Mozart transformou o caos testemunhado por meus olhos n'um verdadeiro quadro, talvez "hiper-expressionista". É magnífico. A coreografia desvairada de pessoas que já não obedecem mais as regras de vôo, o coro de gritos e orações unido aos ruídos excruciantes provenientes dos motores 1 e 2, o balançar tão sincronizado das máscaras de ar que não foram usadas por seus passageiros inconscientes; tudo. Não há como negar, de meu privilegiado assento, a beleza épica diante de mim, dentro deste avião. O momento tão esperado se aproxima. As pequenas casas de Bordeaux, que minutos atrás se enxergava com dificuldade, vão aumentando de tamanho exponencialmente. Um campo enorme, mesclado entre folhas secas, amarelas e vermelhas, espalhadas pelo solo, e outras, que ainda sustentam-se em seus frágeis galhos, aguardando pelo momento de sua qued

1 comentários:

Beatriz disse...

Seu texto me fez enxergar um pouco a alma do personagem. Achei incrível chegar no último parágrafo do texto e perceber que o fim inicia sua história. Gostei muito.

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