03 junho, 2015

Undone pain.

The shadows left by a candle
Waiting for dawn to rape them off
Can not shout, or grieve upon my eyes.
Carrying on the day-by-days
Waiting for shelter
Behind a landscape stitched on their veins.

Cry your melted Crayons out.
Wipe out the achromatic waves
Do not sell the world a lonely slave.
Unless it's you.
On the bottom of a flask
Seized by tears and salt.

I can see and hear your name.
Even so, you ask me for more.
As I sore, your god wants the same.
The same old story of a boy, an angel, and a saint.

'Ludicrous'... You must say.
A hell of a compliment
For a bald old lady
With her dreams fading away
By the laws of a cancer fringe.
And her son couldn't stay.

Files covered by time's sweat.
Dust.
Ambitions waiting on the end of the line.
Submissions and laughter
for those who are claimed blind.

What else is there to find?

Undone pain.



12 abril, 2015

Um estranho

um estranho caminha pela areia
ele deixa pegadas estranhas
suas pegadas fazem sentido algum
são pegadas tristes.
pegadas que carregam grãos de areia
chorando.
Ou grãos de lágrimas
esfarelando.
ele escuta gritos ao fundo
exaltações
seres que conseguem.
fazem
gritam
choram
riem
gozam.


Suas pegadas alinham-se.
Aparentam sentido
vontade
e param no limiar entre areia seca
e areia banhada.
atônitas,
contemplam o Mar e sua força
de fazer;
gritar
chorar
rir
e











um estranho caminha pela areia.

Silêncio

o homem saiu de seu quarto.
foi em direção à cozinha.
não tinha fome
não tinha sede.

Apenas saiu de um coma
e tentava esquecer
o absurdo que é ser.

28 março, 2015

Diário de Bordeaux

  Uvas; parreiras inesgotáveis até onde os resquícios de nuvem, do outro lado da janela, não ofuscam minha curiosidade. O que eu não daria por um bom vinho agora...? Confesso que, dadas as circunstâncias, ofereço minha vida de bom grado. Não sei muito bem por onde começar.
    O início, ou fim, muito provavelmente ambos, desta estória(ou história; já vai sê-la ao momento em que alguém estiver lendo isto), toma parte em minha viagem para França. Já estou perto dos meus 50, e nunca havia conhecido o país. E olha que venho de família afortunada. Sei lá, nunca fui de mostrar muito interesse ao que se julga interessante. No momento, gostaria de ser aquele cara, que já com seus dois filhos indo para a faculdade, e comemorando suas bodas de sei-lá-o-quê no seu próspero casamento, olha para trás e diz para si mesmo(ou para a câmera), após um profundo suspiro: "É... Foi uma vida bem vivida." Gostaria mesmo. Por muito tempo senti aversão a esse tipo de sujeito, mas hoje, mais especificamente nestes últimos minutos, gostaria de dizer isso para mim mesmo, ou então para a mulher gritando ao meu lado, e não sobrar-me dúvida alguma. A dúvida... Esta sim foi uma companheira para a vida toda. Se tivéssemos nos casado no papel, já teríamos passado das bodas de ouro. A dúvida faz o medíocre. O cria diante dessa merda de mundo, se espalhando de maneira viral. Para seus filhos medíocres, seus netos medíocres. No meu caso, tive a decência perante a humanidade, e optei por não ter filhos. Optei, porra nenhuma! Acho que não há mais porque mentir para ninguém, muito menos para mim mesmo. Queria ter filhos. Sempre fui fascinado pela ideia de ter uma extensão minha, mesmo que fosse de minha mediocridade, mas seria minha. É um puta narcisismo e eu sei. É que nunca tive coragem de me comprometer a ninguém, nem comigo mesmo... E um filho implicaria mais uma Mãe enchendo o meu saco. Não consigo nem imaginar. Portanto, acho que fiz bem em não ter tido filhos, ou casado.
  Merda! Preciso me concentrar. Tenho que terminar esta merda logo. Onde eu estava? Ah, sim... Como vim parar neste avião.
  Há um mês e umas duas ou três semanas, estava batendo um papo com o coordenador não-sei-das-contas da minha antiga editora. Ele já me fizera um ou dois favores lá dentro, e eu tinha até um certo apreço por ele. Me chamava, vez ou outra, pra tomar um cafézinho e falar da vida. E eu ia, de certa forma, animado. Sempre preferi ouvir as pessoas a ter que revelar minha vida, por mais conversa-de-bar que fosse... Isso até que me ajudava com as garotas, por ouvir o que elas tinham a dizer, e tudo mais, mas não era útil quando se tratava de "fazer" amigos. Porém, dessa vez sua atenção estava virada especialmente para mim. Ele queria saber o porquê de nunca mais ter recebido minhas ligações lá na editora. Realmente, fazia muito tempo. Disse até que sentia falta das minhas crônicas e romances(de, no máximo, 100 exemplares). Das quais eu duvido que ele jamais tenha lido uma página. Respondi dizendo que me faltava tempo, e, antes que pudesse concluir minha resposta, ele retrucou rapidamente:"Um escritor? Sem tempo?! Essa é boa!" e soltou uma gargalhada irritante, daquelas que duram um tempo exagerado e lhe obrigam a rir também para não tornar a situação desagradável. Esbocei uma risada sem-graça e trissílaba, seguido de um belo gole de café, e um olhar distante. E o pior é que o desgraçado tinha razão. A falta de tempo foi uma desculpa das mais esfarrapadas que já tive o desgosto de inventar. Resolvi abrir o jogo(claro, não todo o jogo). 
  Lhe contei sobre minha condição. Não era câncer, ou alguma doença do coração, o que tenho certeza que atrairia uma vasta legião de (in)desejáveis leitores para esta peça. E sim, minha terrível e terminal ausência de criatividade. O caso mais grave que já vivenciei. Havia 1 ano, 2 meses, e 18 dias que não escrevia nada. 
N-A-D-A. Pensava que, um sujeito como Carlos(seu nome só me ocorreu agora) ficaria horrorizado ao ouvir algo do tipo. Mas, pelo visto, os negócios iam de mal a pior. Ele é o tipo de cara que sempre tenta tirar o melhor da situação, por mais fétida que a merda toda cheire. E ignorou minha miserável situação, o que me deixou bem envergonhado, e se pôs a pensar em soluções. Me encarou durante segundos e finalmente rompeu o agradável silêncio: "O senhor está deprimido?"- perguntou-me com curiosa destreza. Eu demorei para lhe responder. Não que não soubesse se estava deprimido, muito menos porque tinha medo de lhe conferir tal resposta, mas tentava classificar seu tom de voz. Ele começara a frase com um "senhor", demonstrando um respeito que raramente me atribuía, apesar de minha superior idade; e a terminara num tom ansioso, como se torcesse para que a a resposta fosse sim. "Não." - respondi com firmeza - "Definitivamente, não." E ele bufou, desapontado.(Entendi, horas depois do fim de nossa nada amistosa conversa, o porquê de sua reação. Escritores deprimidos podem produzir a qualquer momento.)Voltou a olhar pra baixo, concentrando-se em busca de uma nova solução.
  "UMA VIAGEM!" - saltou da mesa, comigo junto devido ao susto que levei - "Eu bem sei que o senhor é rico-de-berço... Pode agendar uma viagem, uma espécie de férias de seu ócio, hãn? Acho que lhe faria muito bem!" - começou a vender seu produto antes mesmo de saber do que se tratava - "Deixe-me ver... Estamos adentrando o outono. Quem sabe um destino como a... França!" - borbulhava de entusiasmo - "Sim!" - parecia estar iniciando uma espécie de orgasmo. Fechou os olhos, indicando-me com as mãos para que fizesse o mesmo - "Imagine o senhor sentado num banco de uma 'boulevard'" - ainda encrementou um sotaque fajuto à sua fantasia - "cercado por folhas alaranjadas, arrastando-se pelas calçadas, num lindo fim de tarde parisiense, respirando arte e inspiração!". Por mais superficiais que fossem, suas palavras despertaram certo interesse de minha parte. Afinal, nunca havia visitado a França. Realmente me imaginei no tal banco, escorando-me metro a metro pelas ruelas de Paris, bêbado de vinho. Parecia um bom plano, tive que admitir. Depois disso, o disse que ia pensar no assunto, e nos despedimos. Ele provavelmente tinha uma lista cheia de outros "cafézinhos" com escritores que não lhe telefonavam fazia tempos. E comprei minha passagem na semana seguinte. Um vôo para Paris, com decolagem prevista para as 22:00, e aterrissagem às 9:00 da manhã, no dia seguinte. Classe econômica. Nunca havia viajado na classe econômica, nem ido à França. Acabaria com isso nesta viagem.
  O estágio do texto, agora, é crítico. A estória que lhe(s) escrevo já se encontra no mesmo espaço físico, e em alguns instantes, se coincidirá temporalmente.
  O vôo de onze horas, até o momento, passou inacreditavelmente rápido. Engraçado, pois encontrei mais sossego aqui na classe econômica, do que na aclamada primeira classe, com todas aquelas comissárias de bordo enchendo o saco, perguntando se eu gostaria de mais alguma coisa. Minhas distrações, aqui na econômica, foram naturais e dignas de minha admiração. Inúmeras famílias e seus caçulas mal-educados chutando a poltrona da frente; pessoas gordas e suas volumosas pernas comprimidas no ridículo espaço entre um assento e outro, obstruindo a passagem de pessoas não tão gordas que vão ao banheiro sempre que obtêm a chance; ou então, gente neurótica que começa a puxar assuntos incoerentes de maneira excessiva, durante a decolagem, por seu medo de voar. Achei o máximo.
  Uma pena vê-las tão desesperadas agora. Sucumbindo ao inevitável. Como explicar para os próprios filhos, que seu sonho(o que seguramente era de seus pais, projetado neles) de conhecer a europa, seria vetado pela porra de "falhas técnicas nos motores 1 e 2" - palavras cautelosamente escolhidas pelo piloto - que começaram a dar problema pouco antes de sobrevoarmos a fronteira francesa.
  À esta altura(a qual diminui quilômetros a cada minuto), muitos já se encontram inconscientes. A senhora que permanecia em estado histérico desde o comunicado do capitão, enfim, desmaiou ao meu lado. Não sei muito bem se desmaiou ou enfartou. E eu também não tenho tempo para checar batimentos cardíacos, o que me atrasaria na conclusão deste parágrafo, e não faria nenhuma diferença a seu trágico fim; empurrei(respeitosamente)sua cabeça para o lado em que outro senhor repousava. É necessária muita concentração para escrever num momento como este. Coloquei, então, meus nunca-tão-úteis fones de ouvido, e não pude escolher o que seria minha última música neste mundo cruel. E, em minha derradeira covardia, escolhi a opção "Aleatório", e fui contemplado com um presente divinal. Um verdadeiro sinal de Deus. O Requiem em D menor de Wolfgang Amadeus Mozart. Não acreditei em meus ouvidos. Como pode? Todas aquelas almas obstinadas a tentar receber qualquer sinal Dele, suplicando por misericórdia, declamando seu amor e fidelidade. E sou eu quem é abençoado. Eu, que nunca fora a uma missa sequer, desde a minha torturante catequese, quando era jovem. Benditas linhas tortas.
  A obra-prima de Mozart transformou o caos testemunhado por meus olhos n'um verdadeiro quadro, talvez "hiper-expressionista". É magnífico. A coreografia desvairada de pessoas que já não obedecem mais as regras de vôo, o coro de gritos e orações unido aos ruídos excruciantes provenientes dos motores 1 e 2, o balançar tão sincronizado das máscaras de ar que não foram usadas por seus passageiros inconscientes; tudo. Não há como negar, de meu privilegiado assento, a beleza épica diante de mim, dentro deste avião. O momento tão esperado se aproxima. As pequenas casas de Bordeaux, que minutos atrás se enxergava com dificuldade, vão aumentando de tamanho exponencialmente. Um campo enorme, mesclado entre folhas secas, amarelas e vermelhas, espalhadas pelo solo, e outras, que ainda sustentam-se em seus frágeis galhos, aguardando pelo momento de sua qued

07 março, 2015

Vida de Pombo

Boa tarde, minha gente!
Me desculpem, por favor.
Atrapalho seu silêncio
E nem vou falar de amor.

Agradeço ao motorista!
Proibiram a minha Kombi
Ele bem sabe o que eu queria.
É só ter um uniforme.

Minha mulher é diarista
Varre chão
Faz milagre no fogão
Não com a lista da patroa
Mas em casa, 
com três filhos e uma broa.

Sei comé que isso sôa:
"Lá vem mais um João
Falar da vida, aí à toa.
Pra no final, pedir mais pão."

Eu sou pobre, sim, senhor.
E com nenhum orgulho!
Trabalhei a vida inteira
Implorando por mais entulho!

Já pensei em muito atalho
Pr'essa tortura ter fim.
Vender bagulhoassassinato...
Preferi o moedor de alho.

Vivo de bico...
Quebrando um galho ou outro
num posso fazer bico
Sem ter onde cair morto!

Quem pega bonde, sem conforto
E ainda olha o próprio umbigo:
Eu já desço ali no Horto.
Seu tempo, em breve, será devolvido.

Num to dizendo que você deva ouvido.
Mas, por favor, preste atenção.
Não carrego droga, arma,
Bala Halls, nem pirulito.

Hoje só vendo minha lábia
Hoje não quero seus trocados
Abram seus olhos! 
Se sintam tocados!

Não se escondam atrás da covardia!
   Sou preto, dá pra ver.
Mas num vô me de-pra-var!
Sou só de cor! Não de uma cor vadia!

Tenho fome... Quem não tem?
Cês tem fome, é "vou pra casa".
Tenho fome, é "passar bem."

Um frango de padaria...
Puxa! O que eu não daria.
Só não dou braço, nem perna
Porque amanhã vou trabalhar!

O padeiro lá da comunidade
Dava pra mim, de caridade 
Os pão que passava do ponto
Queimavam, engrossavam...
Mas lá em casa, alimentavam uma cidade!

Mas, enfim, depois eu conto.
Mais um pouco dessa vida de pombo.
Comer migalha, cagar migalha...
"ô motorista, esse é meu ponto!"




09 fevereiro, 2015

A herança.

Tudo na vida é desesperador.
Tudo na vida é de se esperar dor.

28 janeiro, 2015

6:08 am.


terça-feira, 6:08 am.


  Abigail, como de costume, acorda uma hora antes do programado. O que lhe dá tempo de sobra para escolher qual dilema a fará se atrasar para o trabalho nesta manhã. Seu despertar atinge todo o corpo... Pés friorentos, barriga barulhenta, braços dormentes.
  Após fracassar, como de costume, em seu resgate onírico, não se sente mais confortável em sua cama e se senta. O despertar que atingira o corpo todo minutos atrás, se faz ausente em suas pálpebras. Permanece sentada. A incongruência entre seus olhos e seu ânimo a dissimula em seu dia-a-dia. Ela levanta pra fazer café.
  Bebe a última gota de café sem açúcar no exato momento em que lembra da exagerada caneca de chá de gengibre deixada à deriva na geladeira, noite passada. Dias como ontem, ou qualquer um, fazem com que Abigail só consiga pensar em chegar à casa, e preparar um reconfortante chá de gengibre. Mas por que deixara tanto chá sobrando? Ou então por que enchera tanto a caneca? Vasculhava suas lembranças da noite passada focada em achar uma resposta. Fazia tempo que não conseguia se concentrar em mais nada. Fazia tempo em que não sentia um friozinho tão gostoso... Sentiu seus mamilos apontados sob a camisola. E quando ergueu seus olhos para ver para onde apontavam, percebeu que encarava a geladeira há dez minutos.

  "ABIGAIL  NARAME
  DEPTO. PSICOLOGIA"

  Leu aliviadamente tendo, enfim,  localizado seu crachá. Corria dentro de casa feito louca para poder sair a tempo. O Chefe do departamento já havia a advertido algumas vezes, mas essa semana uma nova ameaça emergia. Rumores de que o novo Diretor do Instituto faria uma visita e subsequente avaliação individual de cada um dos profissionais. Não se sabia até que ponto esta tal visita era verídica, Abigail tinha certeza que não, mas duvidava ainda mais de suas certezas.
  Já no taxi, teve um dos raros momentos de serenidade de seus dias.   Observar as pessoas caminhando no aterro.
  Observava os casais aposentados.
  Os jovens andando de skate e bicicleta.
  Esperava sempre avistar alguma menina, de preferência morena, de cabelos longos e baixinha, voando baixo em um par de patins. De olhos quase que fechados, como se desafiasse sua segurança, como se estivesse cansada de andar para chegar em lugar que fosse, como se quisesse, ao menos uma vez, sentir o vento contra o rosto, sentir o movimento, sentir o deslocamento, mas permanecesse em apenas um lugar. O escuro por de trás das pálpebras.
   Chegou ao trabalho 7 minutos atrasada. Nunca chegara tão cedo.
Passou por seus colegas como um fantasma. Não que isso fosse de alguma maneira especial, todos passavam por todos como fantasmas, afinal, nada mais adequado para um lugar perfumado a Formol. Passou por seu chefe despercebida e aliviada. Tudo parecia normal. Sua sala, ou cubículo, se encontrava aberta. O ambiente de trabalho de Abigail sempre respirou burocracia. Os funcionários, sobretudo os novatos, não obtinham autonomia nem mesmo para circular com as chaves de suas salas, ou cubículos. Mas desta vez a porta se encontrava descerrada. Não escancarada, mas encostada ao ponto de poder ser aberta por um leve sopro. 
  Adentrando sua sala, investigou, como boa forense que era, as peculiares mudanças que o indivíduo que invadira sua sala realizou.
O ambiente parecia estar mais leve. Abigail logo aferiu que haviam menos cadáveres. Conferiu então as gavetas onde eram depositados.   Não havia nenhum. Nenhum sequer. Até esse momento, ela só encontrara motivos para evitar qualquer encontro com o chefe do Departamento. Hesitou durante longos ou curtos segundos apoiada a uma das gavetas semi-aberta... Respirou fundo e foi de encontro à porta. Tentou abri-la com a mesma destreza que entrou e deparou-se com a incapacidade. A porta se encontrava em profunda inércia. Nem mesmo a maçaneta se movia, por mais força que Abigail aplicasse. Tentou arrombar a porta. Quebrar o vidro isolante da janela que dava pro corredor. E nada. Diante disso, resolveu surpreender a todos com uma amostra de vida naquela mulher tão quieta. Abigail abriu sua delicada boca e soltou um grito. Um grito que nem mesmo ela escutou.   Ela sentia as vibrações de seu estrondo primitivo passarem da garganta até os dentes, mas não conseguia ouvir nada. Nem um pio.
Um absurdo que, em sua breve e inquisitiva memória, não fazia sentido algum. Sua garganta encontrava-se em perfeito estado... Daí, em mais uma súplica à própria mente, tentou reconstruir seus passos desta manhã. Não lembrava de nenhum diálogo. Todas as insignificantes pessoas das quais Abigail geralmente fugia, a ignoraram. Sua aleatória memória, então, voltava à procura pela menina, de preferência morena, de cabelos longos e baixinha, voando baixo em um par de patins. De olhos quase que fechados, como se desafiasse sua segurança, como se estivesse cansada de andar para chegar em lugar que fosse, como se quisesse, ao menos uma vez, sentir o vento contra o rosto, sentir o movimento, sentir o deslocamento, mas permanecesse em apenas um lugar. O escuro por de trás das pálpebras... O que a fez recordar da viagem até o trabalho. Tinha certeza de que viera de Taxi, e como poderia ter chegado ali sem dar as coordenadas ao taxista? Nem mesmo do rosto do motorista ela se recordava. Nem da quantia paga. Caía, aos poucos, em sua torturante demência. Era desesperador.
Parecia ter-se dado por vencida contra sua mente,mas ainda tinha seu corpo. Se jogou contra a porta numa última tentativa de sair daquele estranho pesadelo. E, confrontando mais um fracasso, escorregou tangente à porta até o chão. A luz que iluminava sua sala encontrava-se numa intensidade singular. Enquanto deslizava, percebeu a uniformidade entre porta e chão. Rebaixou a cabeça até onde seria possível enxergar o outro lado da porta, mas era como se houvesse uma parede branquíssima a substituindo. Ergueu o olhar na mesmo compasso em que erguera mais cedo ao olhar seus próprios peitos, e não via mais a maçaneta. Afastou-se prontamente da porta ou parede onde se encostava, e era tudo meramente branco. Sem limites aparentes.
  Seu próximo passo foi uma espécie de sadismo. Se beliscava, dava tapas em sua própria cara. Se mordia. Se masturbava. E nada. Se sentia uma raposa aos cuidados de Lars Von Trier. Reconhecia a dor e o prazer como o ápice único do "ser" humano. Não havia caminho mais preciso para a realidade do que os dois. E nada sentiu. 
  Exausta, Abigail tentou organizar seus últimos passos em consciência para verificar o que havia de errado, mas sua memória parecia armar truques. Tudo o que esmiuçava em sua cabeça retornava ao relógio do lado da cama, informando as 6:08 am.
  Ela, então, encarou a sala em que estava, canto a canto. Como uma cena de Stanley Kubrick. 
  A sala ficava cada vez mais pálida. Ela olhou para baixo.
  E viu um cadáver coberto. Não queria descobrir o rosto. De certa forma, sabia o que encontraria ali... Mas, mesmo assim, sua curiosidade lhe matava por dentro. Ou por fora. 
  Não tinha coragem de encarar o rosto que ali fora reclinado.
  Decidiu pôr fim à sua tortura e levantou o cobertor do lado dos pés do cadáver. 
  Quando sentiu tocar uma espécie de material plastificado. O que a surpreendeu, pois não esperava uma etiqueta de óbito na situação que encontrava-se.
  Pegou a etiqueta com a mão.
  E Leu: "6:08 am."





Abigail Narame era vista como uma mulher fria e discreta. Poucas pessoas, quiçá nenhuma, sentiram Abigail. Era mulher para ser fitada. Admirada. Porém, nunca decifrada. 
Fora assim durante toda a sua morte.


  



19 janeiro, 2015

Estantes e Instantes.

Meu quarto.
não possui nem um quarto de mim.
Uma cama que mal cabe meu próprio sono.

Ingressos para shows perdíveis.

Uma persiana transparente.

Livros bons.
Best Sellers.
Três malditos livros de Dan Brown.

Dicionários.
Em inglês.

Imãs de segurar retratos.
Bolas de futebol e garrafas de coca-cola
São seus formatos.
Crucificados logo acima de um porta-lápis com Frida Kahlo.

Uma pequena escultura de Ganesha abraçada 
por um terço.
Ao lado de uma pedra, talvez um quartzo. Enclausurados.
por um quarto.

Dois CD's.
(Ambos, presentes)

Um enorme cartaz de Pulp Fiction

Um copo transparente de doses.
Estampado com I Coração NY.

Fotografias sem qualquer nexo às minhas melhores lembranças.
São muitos os meus esquecidos rostos que me observam, no momento.

Minha foto anual para o álbum de fotografias da turma 401.
A primeira refeição de minha irmã mais nova.
A primeira ida ao estádio do meu time.
Um abraço sufocante em minha mãe, em meu primeiro sofá.
Uma fotografia de cabine de uma festa de 15 anos.
Amigos que já não tenho mais afeto algum.

E as paredes e teto.
Cinzas.

Meu quarto é um cinzeiro.
Se mostra objeto sem valor, inútil quando não é utilizado.
É armazém de cinzas ou memórias
De uma vida nem mal, nem bem vivida.
De uma vida tragada.

Tantas estantes
Tantos instantes
Pertencentes ao restante.
















13 janeiro, 2015

Dois Irmãos

Desculpa pela má caligrafia... Parei pra beber uma dose de whisky no caminho de casa. Sim, eu voltei a beber. Você pregava que eu não conseguiria ficar 3 meses sem beber. E eu fiquei meia semana.
Mas pregava muita hipocrisia também... Teve uma coisa que você cuspiu na minha cara que ainda tá difícil de engolir. Que "fazia tudo para manter essa família unida!". Até a merda do dia seguinte quando levou meu filho embora. Mas isso não importa. Quer dizer, importa sim, importa pra caralho! Mas mesmo assim, não vem ao caso.
Sabe de uma coisa? Eu ia ficar três meses sem beber, e talvez até mais. Ia mesmo. Até hoje, quando aconteceu a segunda maior tragédia da minha vida. Acho que essa é a parte da carta em que você começa a se importar com o que eu tô te escrevendo.
Quando você finalmente cumpriu sua ameaça de me deixar, não pensou, ou talvez até tenha pensado, mas irrelevou, na separação entre a Lú e o Caê. Eu sei que a Luisa não era sua filha, e que vocês nunca fizeram muito esforço para tentar mudar esse estigma. Nem eu fiz. Mas ela e o Caetano eram muito mais do que meros irmãos postiços. Eles amavam um ao outro. Se entendiam de uma maneira tão harmoniosa, apesar da diferença de idade. Até mesmo quando a Luisa entrou para o ginásio, ela não deixou de andar com ele, nem de fazer questão de irem pra escola juntos. Você não tem ideia do que foi vê-la contando os dias no calendário da geladeira para que as férias acabassem logo, e que ela, pelo menos, pudesse voltar a conviver com seu irmão mais novo. Ela ficou tão entediada morando sozinha comigo... Eu nunca havia percebido esse meu lado tão chato.
O que leva à ideia que tive há uma semana... Um programa pai-e-filha, saudável, como se fôssemos uma família normal, porém sem a mãe, que preferiu ficar em casa para nos dar um tempo a sós e nós botássemos o papo em dia.
Desculpa se eu não estou sendo objetivo... Esse costumava ser o seu defeito. Mas tenho medo de que escrever o acontecido possa doer tanto quanto tê-lo presenciado.
Propus à Lú que nós fizéssemos a trilha do morro dos Dois Irmãos... Não hesitei muito em fazer a proposta, uma vez que era uma vista linda, era perto o suficiente para que a Luisa não ficasse com preguiça, e também porque era um programa que dificilmente faríamos com você por perto. E como eu queria que você estivesse por perto.
Na primeira vez em que mencionei a ideia, ela me pediu para repetir o nome do morro umas duas vezes, o que estranhei, pois sabia que ela, morando no Leblon há tanto tempo, já estava familiarizada como o nome. Após eu reafirmar: "Dois Irmãos." Ela expressou um olhar discretamente surpreso por realmente estar ouvindo aquilo, e logo em seguida me encarou com um olhar contínuo e devastador de desprezo. Eu nunca fui muito bom em interpretar as mulheres e seus dialetos corporais... Menos com os seus. Mas quando eu menos esperava, no dia seguinte, o que foi há dois dias, ela veio até meu quarto me concedendo sua ida à trilha. Como uma espécie de prêmio de consolação por eu ter tentado. Você já deve ter percebido a dolorosa ironia pela qual a Luisa teve que passar, e que apenas me ocorreu entre a terceira e quarta dose... Ou a quarta e a quinta dose de Bourbon. Eu não fazia ideia.
E lá fomos nós... Um dia depois, à nossa maquiada jornada Pai-e-filha. Esperamos até umas 17h para pegarmos o ônibus até o Vidigal. Tanto eu, como ela, só pensávamos em evitar o escaldante sol durante a subida, e também pegar o pôr-do-sol, vermelho como uma Cereja 
adentrando as nuvens de glacê, ao chegar no pico. A Luisa queria subir de moto-taxi, e você talvez fique surpresa em saber que eu disse não à ela. Como um pai responsável. Era uma jornada bastante maquiada. Isso a frustrou e a manteve calada durante praticamente todo o percurso. Toda aquela esperança hollywoodiana que eu tinha desse passeio dar certo ia por água abaixo. E por falar em água esse foi mais um dos motivos para deixá-la amargamente puta comigo. Levei uma garrafa de 600mL. Houve um momento, contudo, que lher foi prazerosa a subida... Quando eu escorreguei numa das partes mais íngremes e sujei toda a minha bermuda com terra. Ela esboçou o que parecia ser um riso.
Chegamos ao topo minutos antes do pôr-do-sol e ele ainda estava num tom alaranjado.
Não tinha muito o que esperar da Luisa lá em cima... Ela nunca foi o tipo de garota que ia de acordo com a maré, como a maioria das meninas da sua idade. Não tinha interesse em tirar fotos bacanas e mandar para suas amigas ou amigos. Ela nunca ligou muito para o que os outros pensavam dela, e eu sempre me orgulhei muito disso. Lembro que isso te incomodava um pouco, afinal, ela também não ligava para o que você pensa. Nem o que eu penso. Acho que a única pessoa por quem ela já realmente se importou foi o Caetano. Enquanto subíamos em silêncio, eu torcia para chegarmos logo ao topo, não mais como um 'Grand Finale' da nossa trilha, mas para que aquilo, seja o que fosse, enfim terminasse. Mas, pelo visto, a Luisa fez questão de um 'Grand Finale'.
Ela sentou-se pensativa numa das pedras viradas para o mar, parecia ter procurado o local mais afastado possível naquele pequeno espaço. Dois grupos de pessoas, provavelmente turistas de algum lugar carente de beleza do Brasil, começaram a aplaudir o sol se pondo como, presumi, um eco do que presenciaram antes numa visita ao Arpoador. Não conversei com ela sobre isso, mas tenho certeza que a irritaram.
O crepúsculo, enfim, terminou, e passado um tempo, éramos os únicos lá em cima. Achara um pouco desconfortável a presença de tanta gente desconhecida nos cercando, mas passei a ficar mais ainda na presença da minha própria filha. Então, separado dela, comecei a pensar coisas que julgava, naquele momento, horríveis: "será que nossa relação será sempre assim de agora em diante?" "Ou será que já era assim, mas a presença do Caê e a sua nos mantinham ocupados e entretidos?" "Sou um péssimo pai! Não consigo puxar um assunto sequer que não soe patético aos ouvidos dela." Eu remoía.
Foi quando Luisa me mostrou a superficialidade dessas preocupações.
Voltei a me virar para o lugar onde a vi pela última vez, pensando ter dado um longo e necessário momento de privacidade, mas ela não estava lá. Olhei para todos os lados, e nada. Chamei seu nome em voz alta, e nada. Esperei cerca de um minuto e meio encostado à estaca central da pedra, cogitando quem sabe uma mudança de espírito repentina da Lú com uma brincadeira de esconde-esconde, como ela tanto fazia quando era pequena, e nada.
Ela desapareceu. Foram tantos os pensamentos que vinham à minha cabeça... Tentava não me desesperar, mas como? Estava escurecendo, e na melhor das hipóteses, minha filha de 15 anos estava caminhando sozinha mata adentro. Uma mata cheia de animais silvestres, Homens silvestres, bandidos silvestres, policiais silvestres. Tentava não me desesperar. Mas eis que surgiu o ápice de meu pânico. Caminhei vagarosamente até o local em que ela se encontrava sentada 10 minutos antes... Esperava até algum tipo de recado, ou pista, que me guiasse ao seu encontro. Achei apenas pequenas pedras. Me sentei exatamente onde ela se sentara. Comecei a chutar algumas das pedrinhas como um escape da ansiedade... Aposto que ela fez o mesmo enquanto estava ali. Daí levantei rapidamente, e no que fiz isso, me desequilibrei. Foi aí que me deparei com o precipício que separava aquelas pedrinhas de uma mistura fatal de rochedos e árvores centenas de metros abaixo. 
No segundo em que consegui recuperar meu equilíbrio, perdi meu controle emocional.
Chorei.
Esperniei.
Gritava o nome de Luisa à toda força. 
Procurava algum rastro, quem sabe de sangue, nos rochedos...
Ela não pode ter pisado em falso e caído sem ter expressado um mísero grito de pavor. Eu sabia que a Luisa era de certa maneira, fria. Mas nunca imaginaria, e até agora custo a acreditar, que ela seria capaz de tamanha frivolidade. Ou terá sido suicídio? Será que fui tão deplorável na minha função de pai, que não fui nem capaz de perceber um comportamento suicida da minha própria filha?
Descia a trilha numa velocidade frenética, caí algumas vezes, e toda vez que ia ao chão me odiava mais. Cada atraso ao amparo de minha filha, na agora segunda melhor hipótese, era mais tempo em que ela se encontrava ferida e sozinha dentro da selva. Odiava cada pedra que me esbarrava pelo caminho. Odiava as bifurcações da trilha que me confundiam e aumentavam a cada minuto meu desalento. Odiava os policiais que encontrei ao pisar dentro da favela. Odiava os moradores curiosos que assistiam de camarote ao meu sofrimento. Odiava a mim. Mas te odiava. E como odiava. Por que você não estava ao meu lado num momento daquele? Comecei a ligar os pontos ao descer a favela e cheguei à egoísta conclusão de que era tudo culpa sua. Se você mantivesse sua promessa de manter essa família unida, se tivesse ao menos me dado uma chance de lhe convencer a não ir embora, talvez nada disso teria acontecido. Talvez a Luisa estivesse assistindo TV na sala com o Caê deitado com a cabeça sobre seu colo... Roncando baixinho... E sempre que acordasse, negando ter caído no sono. 

08 janeiro, 2015

Melancolia

Dança comigo.
O cambalear de um bêbado
Fica bem perto
Faz que vai, mas não chega.

Dança comigo.
Quero teu bafo a me purificar
Dessa doença que vive dentro de mim
Corroendo minha pele.

Dança comigo.
Desespera cada grão de vida
Me faz crer no incrível
Quero ver e ser finita.

Estremece minhas mais profundas entranhas
Me disforme até que seja sua.
Extinta, poeira.
Mas sua.

Escondida atrás da Luz, eis que surgiu.
E nunca mais 
Me deixou em paz.
Tu perambula
Desvirtua minha bússola.
E se impõe goela abaixo.

No início, apenas me confundira.
No meio, fez meus fins de tarde, a três.
E enfim, me infestou com o seu azul.

Eu que era conhecida como Planeta Azul.
Me desfaço do orgulho, e minha beleza.
Pra encarar tua implacável íris

Reluzente
Ausente
Curiosa
E Furiosa.

E a beijo.
Goela abaixo.

Ex-emplo


-Olá?
-Oi.
-Ufa... Pensei ter perdido sua ligação.
-E por que pensaria isso?
-Bem, demorei um pouco a alcançar o telefone e...
-Não. Quero saber o porquê da urgência em me atender.
-Mas... Como assim? 
-Você sabe que eu não gosto disso.
-Disso o quê?
-Exatamente isso!
-Me conta então, oras!
-Sua mania de fingir que não sabe do que estou falando.
-E desde quando isso é uma mania minha?
-Falando em manias...
-E o que foi agora?
-Nada... 
-Agora desembucha!
-Esse seu tom melodramático e sarcástico como mecanismo de defesa.
-Quê?!
-É! Você começa a falar assim... Como se estivesse ensinando algo.- É um saco.
-Só não entendo por que apenas as minhas manias estão sendo expostas aqui...
-Como se eu tivesse algumaS no plural...
-Que ironia... Você replica meu argumento com uma das suas mais irritantes.
-Que seria...?
-Esse seu "S" exagerado quando você quer enfatizar a não-pluralidade das coisas! Não tem ideia de como isso me irritava! Até pelo telefone dá pra sentir as gotículas de saliva sendo espirradas pela sua boca!
-Você é realmente inacreditável, sabia disso?
-Isso pra mim é elogio e você sabe.
*risada irônica*
*suspiro*
-Às vezes você me faz perder completamente o fio da meada... Esqueci até o motivo pelo qual te liguei.
-Ah, esqueceu? Pensei que era o mesmo motivo de sempre.
-Que seria...?
-Ouvir minha voz.
-Acho que uma ligação sem ouvir nenhuma voz perde o sentido, não?
-Você entendeu...
*4 segundos e meio de silêncio*
-Bem, é isso então.
-Você realmente vai desligar? Sem ao menos perguntar algo de útil?
-Meu Deus! O que você quer que eu lhe pergunte? Manda! Qualquer coisa!
-Que tal... Como vai o Charles?
-Tá aí o seu senso de utilidade: perguntar sobre um cachorro. 
-E o seu senso de amabilidade?! Se é que há algum... Nós compramos o Charles juntos!
-Você comprou o Charles na época em que estávamos juntos. São coisas completamente diferentes. Nunca gostei muito de cachorros... E você sabia disso desde o nosso...o que? Terceiro encontro?
-Quinto.
-Aí! Tá vendo? Você sabe até o encontro exato! Por que não admite logo que comprou esse cachorro somente pra me irritar!
-Admito. Mas era preciso.
-Era preciso?
-Sim. 
*silêncio de 2 segundos*
-Vai ter a decência de me explicar, ao menos?
-Acho que pra mim já deu dessa ligação, Cadu...
-Pra mim ainda não. Me explica por que você precisava me irritar?
*resmungos indecifráveis*
-Ok. Há semanas que eu tentava conseguir algo de você. Mas que droga! Foi você que sugeriu que nos mudássemos, Cadu! Você! Eu achei tão maduro da sua parte ao ouvir aquelas palavras saindo da sua boca...'Por que você não vem morar comigo?'. E nem bêbados estávamos. Você deve se lembrar como se fosse ontem, não é mesmo? O dia em que assinou um contrato de posse sobre mim, e me manteve catarse. Como se eu fosse a MERDA de um terreno baldio numa região de alta especulação imobiliária!
-Como você pode dizer...?
-Você que pediu, agora eu vou contar tin-tin por tin-tin o porquê de eu ter lhe comprado um maldito cachorro!
-Maldito? Ok.
-E lá estava eu... Iludida. Uma dona de casa moderna aos 27. A primeira semana foi perfeita. Teve toda a intensidade que eu esperava para toda a nossa aventura conjugal:sexo, brigas, comida chinesa, disputas para encontrar o controle remoto que terminavam em sexo. Mas foi isso. Uma. Duradoura. Semana. Os dias foram se passando e eu comecei a não me ver mais no espelho. Comecei a esfarelar. Sextas-feiras à noite em casa, vendo tv. Logo eu! Mas o problema não era majoritariamente esse. Meu incômodo era perceber que eu havia trocado sextas agitadas pela Lapa com minhas amigas e colegas de trabalho, por noites de ansiedade, esperando você chegar como se fosse uma frágil e carente filhote de cachorro. Eu aposto que você vai colocar a culpa disso tudo no seu trabalho... E, mal ou bem, era mesmo. Mas achei um tanto quanto curiosa sua "inesperada" mudança para o período noturno. Você me conhecia muito bem, e ainda me conhece. E com certeza não vai titubear se eu lhe perguntar o peso que a noite me causava? O peso que eu sentia ao ouvir a noite.
Nós dois trabalhamos em Redações, Cadu. Conheço muito bem o ambiente, as regras, as ciladas que o nosso trabalho pode nos impor. Mas sei também que você, na época, obtinha sim, uma grade de horários flexível e à escolha. E eu sei que foi você quem optou por trabalhar à noite. 
-Você pode até ter uma parcela da razão, Line... Não vou tentar esconder minhas esquivas de você. Você me conhece muito bem. Mas acho que se equivocou ao me interpretar como "maduro" ao ouvir aquelas palavras saírem da minha boca. Mas ainda não entendi a relação disso tudo com a aquisição do Charles.
-Como você não consegue ver a ironia nisso tudo? Tentei trocar uma aquisição por outra. Você tentou me adestrar, Cadu. Sempre fui cabeça-dura, implicona, "mão-pesada"... E com um pouco mais de uma semana comigo ao seu lado num horário integral, você apelou para um ridículo adestramento!  Me guiou em que lado da cama me deitar, como fechar as portas do apartamento com um "estrondo" como você dizia...Deus, até como dar descarga da maneira correta! Mas disso tudo, nada me afetara. Nada, ao meu antigo e ingênuo ver, me afetara tanto quanto a próxima tática de adestramento que você viria a praticar: a indiferença. Foi aí que a estória do trabalho veio, os horários inconcomitantes, os recados na geladeira sem um mero "te amo". E passadas semanas me afundando em tentativas rasas e imperceptíveis à sua indiferença, tive a bendita ideia de comprar um cachorro. Talvez como uma espécie de simbolismo, de alusão ao que eu achava do tratamento que você me dava. Não estava com a cabeça no lugar, não pensei muito bem... Porém não me arrependi.
-Você se apegou até demais a esse cachorro... É óbvio que não se arrependeu.
-Quer saber o verdadeiro motivo da minha ausência de arrependimento?
-Diga.
-Sua reação. Sua reação não chegou nem perto das minhas viajadas expectativas. Mas mesmo assim, suprimiu seu estado vegetativo de indiferença. Você se irritou! E como eu curti aquela irritação, Cadu! Como! Ter conseguido arrancar alguma expressão que não fosse apatia de seus olhos, rugas e boca foi uma vitória! Foi uma das melhores sensações da nossa breve aventura. Me senti uma mulher mais uma vez. Deixei de ser um cachorro.
-E... Agora? Como ficamos?
-Apenas não ficamos.
-Poxa, Line. Deixa eu te recompensar... Fui realmente um babaca. Te pago um jantar em qualquer restaurante do Rio! É só dizer.
-Eu deixei de ser um cachorro.
*A linha cai*