-Olá?
-Oi.
-Ufa... Pensei ter perdido sua ligação.
-E por que pensaria isso?
-Bem, demorei um pouco a alcançar o telefone e...
-Não. Quero saber o porquê da urgência em me atender.
-Mas... Como assim?
-Você sabe que eu não gosto disso.
-Disso o quê?
-Exatamente isso!
-Me conta então, oras!
-Sua mania de fingir que não sabe do que estou falando.
-E desde quando isso é uma mania minha?
-Falando em manias...
-E o que foi agora?
-Nada...
-Agora desembucha!
-Esse seu tom melodramático e sarcástico como mecanismo de defesa.
-Quê?!
-É! Você começa a falar assim... Como se estivesse ensinando algo.- É um saco.
-Só não entendo por que apenas as minhas manias estão sendo expostas aqui...
-Como se eu tivesse algumaS no plural...
-Que ironia... Você replica meu argumento com uma das suas mais irritantes.
-Que seria...?
-Esse seu "S" exagerado quando você quer enfatizar a não-pluralidade das coisas! Não tem ideia de como isso me irritava! Até pelo telefone dá pra sentir as gotículas de saliva sendo espirradas pela sua boca!
-Você é realmente inacreditável, sabia disso?
-Isso pra mim é elogio e você sabe.
*risada irônica*
*suspiro*
-Às vezes você me faz perder completamente o fio da meada... Esqueci até o motivo pelo qual te liguei.
-Ah, esqueceu? Pensei que era o mesmo motivo de sempre.
-Que seria...?
-Ouvir minha voz.
-Acho que uma ligação sem ouvir nenhuma voz perde o sentido, não?
-Você entendeu...
*4 segundos e meio de silêncio*
-Bem, é isso então.
-Você realmente vai desligar? Sem ao menos perguntar algo de útil?
-Meu Deus! O que você quer que eu lhe pergunte? Manda! Qualquer coisa!
-Que tal... Como vai o Charles?
-Tá aí o seu senso de utilidade: perguntar sobre um cachorro.
-E o seu senso de amabilidade?! Se é que há algum... Nós compramos o Charles juntos!
-Você comprou o Charles na época em que estávamos juntos. São coisas completamente diferentes. Nunca gostei muito de cachorros... E você sabia disso desde o nosso...o que? Terceiro encontro?
-Quinto.
-Aí! Tá vendo? Você sabe até o encontro exato! Por que não admite logo que comprou esse cachorro somente pra me irritar!
-Admito. Mas era preciso.
-Era preciso?
-Sim.
*silêncio de 2 segundos*
-Vai ter a decência de me explicar, ao menos?
-Acho que pra mim já deu dessa ligação, Cadu...
-Pra mim ainda não. Me explica por que você precisava me irritar?
*resmungos indecifráveis*
-Ok. Há semanas que eu tentava conseguir algo de você. Mas que droga! Foi você que sugeriu que nos mudássemos, Cadu! Você! Eu achei tão maduro da sua parte ao ouvir aquelas palavras saindo da sua boca...'Por que você não vem morar comigo?'. E nem bêbados estávamos. Você deve se lembrar como se fosse ontem, não é mesmo? O dia em que assinou um contrato de posse sobre mim, e me manteve catarse. Como se eu fosse a MERDA de um terreno baldio numa região de alta especulação imobiliária!
-Como você pode dizer...?
-Você que pediu, agora eu vou contar tin-tin por tin-tin o porquê de eu ter lhe comprado um maldito cachorro!
-Maldito? Ok.
-E lá estava eu... Iludida. Uma dona de casa moderna aos 27. A primeira semana foi perfeita. Teve toda a intensidade que eu esperava para toda a nossa aventura conjugal:sexo, brigas, comida chinesa, disputas para encontrar o controle remoto que terminavam em sexo. Mas foi isso. Uma. Duradoura. Semana. Os dias foram se passando e eu comecei a não me ver mais no espelho. Comecei a esfarelar. Sextas-feiras à noite em casa, vendo tv. Logo eu! Mas o problema não era majoritariamente esse. Meu incômodo era perceber que eu havia trocado sextas agitadas pela Lapa com minhas amigas e colegas de trabalho, por noites de ansiedade, esperando você chegar como se fosse uma frágil e carente filhote de cachorro. Eu aposto que você vai colocar a culpa disso tudo no seu trabalho... E, mal ou bem, era mesmo. Mas achei um tanto quanto curiosa sua "inesperada" mudança para o período noturno. Você me conhecia muito bem, e ainda me conhece. E com certeza não vai titubear se eu lhe perguntar o peso que a noite me causava? O peso que eu sentia ao ouvir a noite.
Nós dois trabalhamos em Redações, Cadu. Conheço muito bem o ambiente, as regras, as ciladas que o nosso trabalho pode nos impor. Mas sei também que você, na época, obtinha sim, uma grade de horários flexível e à escolha. E eu sei que foi você quem optou por trabalhar à noite.
-Você pode até ter uma parcela da razão, Line... Não vou tentar esconder minhas esquivas de você. Você me conhece muito bem. Mas acho que se equivocou ao me interpretar como "maduro" ao ouvir aquelas palavras saírem da minha boca. Mas ainda não entendi a relação disso tudo com a aquisição do Charles.
-Como você não consegue ver a ironia nisso tudo? Tentei trocar uma aquisição por outra. Você tentou me adestrar, Cadu. Sempre fui cabeça-dura, implicona, "mão-pesada"... E com um pouco mais de uma semana comigo ao seu lado num horário integral, você apelou para um ridículo adestramento! Me guiou em que lado da cama me deitar, como fechar as portas do apartamento com um "estrondo" como você dizia...Deus, até como dar descarga da maneira correta! Mas disso tudo, nada me afetara. Nada, ao meu antigo e ingênuo ver, me afetara tanto quanto a próxima tática de adestramento que você viria a praticar: a indiferença. Foi aí que a estória do trabalho veio, os horários inconcomitantes, os recados na geladeira sem um mero "te amo". E passadas semanas me afundando em tentativas rasas e imperceptíveis à sua indiferença, tive a bendita ideia de comprar um cachorro. Talvez como uma espécie de simbolismo, de alusão ao que eu achava do tratamento que você me dava. Não estava com a cabeça no lugar, não pensei muito bem... Porém não me arrependi.
-Você se apegou até demais a esse cachorro... É óbvio que não se arrependeu.
-Quer saber o verdadeiro motivo da minha ausência de arrependimento?
-Diga.
-Sua reação. Sua reação não chegou nem perto das minhas viajadas expectativas. Mas mesmo assim, suprimiu seu estado vegetativo de indiferença. Você se irritou! E como eu curti aquela irritação, Cadu! Como! Ter conseguido arrancar alguma expressão que não fosse apatia de seus olhos, rugas e boca foi uma vitória! Foi uma das melhores sensações da nossa breve aventura. Me senti uma mulher mais uma vez. Deixei de ser um cachorro.
-E... Agora? Como ficamos?
-Apenas não ficamos.
-Poxa, Line. Deixa eu te recompensar... Fui realmente um babaca. Te pago um jantar em qualquer restaurante do Rio! É só dizer.
-Eu deixei de ser um cachorro.
*A linha cai*
1 comentários:
Bom texto! Ritmo interessante! Gostei do estilo!
Go ahead !!!
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